A noite é quente. Afinal é verão e não tem como deixar o ar-condicionado desligado. Quer dizer, não teria... A quantidade imensa de "gatos" na vizinhança fez a rede elétrica cair e não há santo que consiga dormir neste calor. Parece que o inferno se mudou para o bairro de tão quente que está. Observo minha esposa, seminua, na cama, ainda dormindo. Não sei como ela ainda não percebeu o calor.
São 3:00 da manhã e desde as 2:00 que não temos luz. Estou de guarda, me estapeando inteiro por causa dos mosquitos que entram pela janela aberta do nosso apartamento e, pelo visto, só eles entram porque não há nenhum sinal de vento ou da maldita luz.
PAFT! Mais um mosquito se foi num só tapa. No momento em que estava contabilizando mais um mosquito morto no meu placar de inseticida humano, o telefone toca.
- Só pode ser o capeta! – murmuro. Claro!! Nesse calor e à essa hora da madrugada, só pode ser “ele” pra tirar um sarro da minha cara!
- Alô?
- Vinny? – pergunta a voz do outro lado. Meu nome é Vinicius, mas todos me conhecem por Vinny.
- Fala Tenente. – era o Tenente Meirelles. E ele não me ligaria à toa.
- Detetive, estou aqui em baixo te esperando. Temos um homicídio.
- Merda! – pensei enquanto desligava o telefone. Ele só usa a palavra “homicídio” quando o caso envolve a granfinagem, gente da “alta”. Se fosse qualquer um seria “boneco” mesmo.
Me vesti em menos de 2 minutos. Devagar demais. Estava lerdo por causa do calor. Antes de sair, dei um beijo na minha esposa que já estava despertando.
- Vai sair?
- Emergência de última hora.
- Jesus... – ela falou como se fosse uma oração. Já sabia que alguém tinha morrido. – Vai com DEUS. DEUS te proteja.
Eu não respondo. Há muito tempo que não sei o que é rezar e nem sei se acredito em alguma coisa mais. Os anos na polícia, as mortes que presenciei, as maldades que acompanhei me deixaram frio. Se há alguma coisa mais forte que nós só pode ser o cramunhão, que não deixa a perversidade humana tirar férias.
Durante o trajeto até o local, eu e o tenente Meirelles só trocamos algumas poucas palavras. Quando chegamos ao local, parecia que estávamos entrando em outro país. A casa era imensa, tipo dessas casas que a gente só vê na televisão, em filme.
Os empregados estavam todos acordados e os seguranças da mansão estavam em polvorosa. Sabem que são os primeiros na nossa lista. Uma das empregadas dava água com açúcar pra acalmar a madame que chorava compulsivamente enquanto o dono da casa andava pra lá e para cá de nervoso.
- Nossos filhos sumiram!! Mataram a Cintia!! – foi a primeira coisa que ele nos disse, quase aos berros.
- Senhor, se acalme. – disse o Tenente – Quem é Cintia e onde ela está?
O ricão não respondeu e só apontou para uma outra sala. Enquanto o tenente tentava saber maiores informações do dono da casa, fui para onde ele apontou. Cintia estava no chão, ao pé da escada. Um outro senhor de cabelos muito brancos alisava os cabelos dela.
- Ave Maria cheia de Graça... – o velhinho orava baixinho enquanto chorava baixinho.
Precisei tirar o senhor com muita calma dali para poder isolar o local para a perícia que iria chegar. Cintia estava com os olhos abertos, duas esmeraldas de tão verdes, olhando fixo para o teto. Seus olhos me chamaram a atenção.
- Algum PAF detetive? – perguntou o Tenente Meirelles.
- Perfuração por arma de fogo, nenhuma. – respondi - Ela foi estrangulada. Ela está com o pescoço marcado.
- A defunta era a babá. Os dois filhos deles e o caseiro estão desaparecidos. Os seguranças viram ele sair de carro por volta de meia noite. Tinha livre acesso. Os donos da casa chegaram por volta das 2:00. Foi quando encontraram o “boneco”.
A perícia já havia chegado ao local para a coleta de evidências. Fotografia do corpo, marcas, material humano embaixo da unha, etc. Eu e o tenente fomos pra o endereço do caseiro. O carro estava lá mas o local estava vazio. Uma vizinha, dessas fofoqueiras que não dormem só pra saber da vida dos outros, disse que viu o cara entrar na casa da esquina com duas crianças no colo enroladas.
Nessa hora, o tempo começou a virar. O calor infernal começou a dar lugar a um vento forte e frio e pingos d’água grossos, que faziam a pele doer. Nem isso espantou a maldita imprensa que já chegou ao local sedenta por uma história, um corpo, uma troca de tiros, qualquer desgraça que fizesse vender notícia no dia seguinte.
Enquanto a gente fazia o cerco e tentava afastar os repórteres, que já tinham as câmeras ligadas, uma mulher andava em direção a casa. No momento em que ela viu nossas patrulhas e o cerco se formando ela desesperou e entrou correndo. As luzes da casa se acenderam.
- Valdoooo? Valdoooo? – dava pra ouvir ela berrar do lado de fora. Mas quase não se ouvia a voz do cara.
- Mas porquê? – berrava ela – Pra quê??? A polícia tá aí fora!! Eles vão te matar!!! – ela agora berrava de agonia.
A chuva castigava lá fora e a gente já estava em posição de invadir. O negociador tantava falar com quem estava lá dentro, mas a discussão dentro da casa e o barulho da chuva impediam qualquer tentativa de negociação.
De repente, uma das crianças saiu correndo de lá de dentro no mesmo tempo em que um relâmpago acendeu a noite e um trovão quase ensurdeceu a gente. Eu peguei a criança e a coloquei, em segurança, numa viatura da ambulância debaixo de muita chuva, câmeras e flashes.
O pessoal estava nervoso. Dentro da casa uma discussão começava. Do lado de fora eu pude ver o vulto do cara dando um soco no rosto da mulher que caiu no chão. Ele apareceu na janela, segurando a segunda criança como se fosse um escudo. Eu só precisava de um tiro. Seria fácil porque a criança não estava colaborando com ele, se debatendo e deixando um bom espaço do corpo dele descoberto. Outro relâmpago acendeu a noite mais uma vez, me ofuscou a visão e não consegui atirar. O estrondo que veio junto não deixou a gente escutar as ameaças dele.
A equipe se preparava pra cortar a energia da casa quando eu vi o vulto da mulher acertando o cara na cabeça com alguma coisa. Ela aproveitou e saiu da casa correndo com a outra criança imediatamente à sua frente. Eu corri ao encontro delas quando ouvi 2 disparos. Ela caiu direto no meu braço. Só tive tempo de um único tiro para dentro da casa antes da equipe invadir.
Os repórteres ficaram em polvorosa tentando se esconder dos disparos ao mesmo tempo em que tentavam fotografar e filmar tudo, só para vender o “sangue nosso” de cada dia.
- As crianças tão bem moço? – perguntou a mulher me olhando.
- Tão sim. – respondi
- Que bom.
Foi a última coisa que ela falou. Eu senti quando seu corpo deixou de ter vida por causa dos dois tiros que ela recebeu nas costas. Os flashes e câmeras iluminaram seu rosto e eu pude ver seus olhos. Olhos verdes e belos sendo banhados pela chuva. Entreguei o corpo dela para o paramédico e entrei na casa onde o cara já estava imobilizado. Tinha vontade de acabar com a raça dele, mas alguma coisa me impediu. Talvez fosse por causa dos repórteres que estavam lá fora, não sei.
Só sei que dei tanta porrada no cara que depois tive dificuldade até de tirar meu sapato por causa do meu pé, que inchou.
No dia seguinte à noite, deitado na cama, via na televisão o noticiário que mostrava o caseiro preso, acusado por assassinato e sequestro. Ele havia surtado e ia seqüestrar as crianças e pedir resgate. Minha esposa, deitada ao meu lado, me abraçou com força.
- Graças a DEUS você está bem. Toda vez que você sai para trabalhar eu peço à DEUS pra te proteger e te trazer de volta.
Eu olhei calado, para seu olhos verdes e brilhantes, e lhe dei um beijo apaixonado.
Pensei em tudo o que aconteceu e imaginei o porque estamos vivendo num inferno. DEUS deve estar recolhendo todos os seus anjos da terra para que eles não sofram. Poucos deles ainda estão entre nós e eu tenho um bem aqui do meu lado.
Faz muito tempo que não sei o que é rezar mas, hoje, eu rezei para ELE proteger o meu anjo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário