terça-feira, 27 de abril de 2010

Ninguém tem culpa


Cheguei em casa pela manhã e entrei pela porta aberta. A porta da frente de casa geralmente não fica aberta. Pude ver o Ramon na praça, que fica próximo de casa, sentado no banco com alguns amiguinhos em volta dele.
Passei a noite toda caminhando, pensando na briga que tive com Elisa. Estamos casados há algum tempo, temos um filho de 8 anos, o Ramon, e sempre que discutimos eu preciso de um tempo para refletir. Geralmente faço isso em casa mesmo, mas a discussão de ontem foi muito feia e eu saí porta à fora, no meio da noite, muito "P" da vida. Não via nada na minha frente, atravessei a avenida próximo à minha casa sem nem olhar direito e quando notei já estava longe.
Quando entrei em casa, Elisa chorando, abraçada, como ela sempre faz quando discutimos, com um porta-retrato que tem a nossa foto. Ela nem me olhou.
- Por quê Quinho? - Ela perguntou. Meu nome é Marcos Aurélio e Quinho era como ela me chamava.
- Lisa - era como eu a chamava - , me desculpa, eu 'tava' de cabeça quente. E antes que fizesse uma besteira maior...

- Não é justo Quinho. Não precisava ser assim.
- Eu sei Lisa. Eu sou "cabeça quente", você sabe disso. Sou turrão e ... - antes que pudesse terminar o telefone tocou e Elisa atendeu.

- Alô... Oi tia, pode dizer. - ela não disse mais nada. Só ouviu. O rosto dela mudou. Não sei como mas ela conseguiu ficar mais triste do que já estava.
- Quando? - perguntou com a voz embargada - Onde? - e a conversa prosseguia - A tia Teresa?
- Aconteceu alguma coisa com a tia Teresa? - perguntei preocupado. Elisa não me respondeu, simplesmente desligou o telefone e caiu aos prantos. Ajoelhada no chão, soluçava muito e chorava compulsivamente. Tia Teresa foi quem me criou como um filho, quem me deu educação, quem me vestiu, me deu de comer, me deu carinho e foi quem nos apresentou. Eu e Elisa devemos muito à ela. Ainda lembro dela me falando:
- Meu filho, jamais deixe que nada nem ninguém, jamais, interfira no seu casamento. Muito menos seu temperamento destemperado! - ela me conhecia e isso me fazia sentir duplamente culpado. Ter feito minha mulher chorar por causa do meu comportamento infantil e imaginar que alguma coisa aconteceu com a tia Teresa.
- Amor, não fica assim... -Falei tentando chegar perto da Elisa para consolá-la mas, ao tocá-la no ombro, ela chorou mais ainda e mais alto.
Não queria piorar a situação e saí pela porta aberta para descobrir o que houve com a tia Teresa.
- Ramon! - gritei o meu filho que olhou para trás assustado - Fique com a sua mãe! Já volto já!

À noite, quando voltei para casa, meus sogros estavam lá. Parece que o pior tinha realmente acontecido. Meus sogros adoravam Tia Teresa e eles sabiam o quanto ela significava para nós. Subi as escadas e minha esposa deitada no nosso quarto. A porta estava aberta, a luz do quarto apagada e ela estava dormindo abraçada ao porta-retrato. Me sentei no sofá que tem perto da cama, tendo o máximo de cuidado para não fazer barulho para não acordá-la. Meus sogros vieram em seguida e minha sogra retirou com cuidado o porta-retrato de seus braços lhe dando um beijo carinhoso de boa noite.
- Amanhã ela estará melhor - ela falou. Eu apenas consenti com a cabeça.
- Venha, - falou meu sogro - vamos deixá-la descansar.

O dia seguinte veio nebuloso. Parecia que o céu estava de luto por tia Teresa e um temporal se armava. Eu passei a noite inteira acordado ao lado de Elisa, chorando baixinho por tia Teresa. Apesar de não dormir há duas noites não me sentia cansado. Nem podia.Tia Teresa merecia que eu estivesse firme.

No velório eu não quis chegar perto do caixão. Não estava preparado psicologicamente para ver tia Teresa ali, deitada, inerte. As pessoas vinham e deixavam seus últimos sentimentos. Uns davam um beijo de despedida, outros um carinho no rosto. Ver aquilo foi reconfortante, me fez sentir bem. Todos os nossos amigos, parentes queridos vindo dar seu último adeus à uma pessoa querida por todos.

Acompanhei o cortejo e fiquei ao lado da Elisa durante o enterro. Não disse nada. Queria me despedir por último, quando ninguém estivesse por perto. Quando todos pareceram sair, Elisa voltou amparando uma senhora, vestida de preto e de véu. Visivelmente transtornada, devia ser uma das grandes amigas de tia Teresa. Quando ela levantou o véu, eu quase caí no chão. Era a tia Teresa, chorando muito quase desmaiando. Não entendi nada e corri para ver o que estava escrito na lápide e quem afinal estava ali. mas não acreditei. Ajoelhei no chão, pus as mãos na cabeça e chorei. Chorei muito. E a chuva caiu.

"Aqui jaz Marcos Aurélio (Quinho),
Marido amável,
Pai adorável
e amigo inseparável.
Que DEUS te guarde.
* 19/01/1979
+ 21/03/2010"

Depois que discuti com a Elisa e saí de casa, atravessei a avenida próximo à minha casa sem nem olhar direito... O caminhoneiro não teve tempo de frear. Nem teve culpa.

13 comentários:

  1. Essa é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nome, pessoas, datas e/ou acontecimentos reais terá sido mera coincidência.

    R. Marcchi

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  2. Fiquei paralisado em frente a tela do meu PC, pensando como começaria esse comentário. Juro que tentei ser burocrático mas, não consegui; certas emoções eu realmente só consigo expressar com a seguinte interjeição:
    "P... que pariu", Marcchi. O seu texto é maravilhoso, cara!!!
    Um forte abraço, meu velho!

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  3. As coisas são assim, valores se dão com as perdas, com aquele 'nunca mais'. Muito bom, prendeu-me. Você tem uma boa lavra , um dom e uma missão. Escreva sempre...
    abs.

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  4. meu irmão, sou o mais novo nesse balão e to gostando muito.

    a vida como ela é...

    abreijo meu irmão

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  5. Maravilhoso,adorei muito seu texto.
    Parabéns...

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  6. É curto e intenso.. a beleza da foto dá um sentido de conciliação. Um retrato de um cotidiano (mesmo que fictício) bem narrado.

    Parabéns... R. Marcchi

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  7. Caramba, Marcchi. Fiquei sem fôlego lendo este conto. Muitíssimo bom!

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  8. Nossaaaa.
    É simplismente fantástico!
    É de fazer tirar o fôlego.
    Muito bom, mesmo, faz agente ir vivenciando o caso a cada palavra.
    Parabéns!
    Agora se puder faça um somentário sobre a minha nova postegem. Obrigada

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  9. Adoroooooooo te ler...mas comentários....só "dizer" que adoro te ler e ponto final.
    Beijos !!!!!

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  10. Noooossssssaaaaa...
    É seu texto é maravilhoso, principalmente pra gente refletir sobre o que realmente importa nessa vida, as pessoas que amamos, e que muitas vezes no calor de uma discussão podemos colocar tudo a perder...

    abçs

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  11. Adorei! Lembrei de um filme e um clipe que assisti. Quando amamos uma pessoa, a nossa familia é dificil se separar. O amor nos deixa proximo. Beijinhoss poeta.

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  12. Muito bom, Marcchi! Uma história bem viável de acontecer... Gostei muito.
    Beijosss

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  13. hahah mto previsível... eu já imaginei o final assim que li o começo da história... mas, foi bacana...

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